O Salto. Foto:
Luciana Zacarias
Um dos capítulos mais tocantes de
Capitães da Areia é “Família”, logo na primeira parte do livro. Esse tem como
foco o personagem Sem-Pernas e a sua moradia na casa de uma rica família do
bairro da Graça.
Não foi à toa a escolha do personagem.
Com ironia, Jorge Amado opta pelo mais rancoroso, amargurado e carente do bando
para o papel de bom menino em busca de uma família que o resgate. Esse atua de
forma magistral ao fazer o apelo que nega sua própria realidade: “Se eu
quisesse me metia aí com esses meninos ladrão. Com os tal de Capitães da Areia.
Mas não sou disso, quero é trabalhar. [...] Sou um pobre órfão, tou com
fome...” (sic). Além disso, ele utiliza o próprio defeito físico para se
reafirmar como coitado e causar comoção no outro.
O cinismo da postura inicial de
Sem-Pernas demonstra uma situação ainda tão atual quanto na década de 30 (época
do livro e da história). São meninos excluídos por uma sociedade elitista,
carentes de afeto, moradia, alimentação, educação, lazer, e que para sobreviver
aproveitam-se da piedade de alguns ricos para depois roubá-los. O aumento da
pobreza e a banalização de fatos como esse provocam a diferença entre ontem e
hoje, no qual esses meninos são ainda mais repudiados.
É chocante ver a ingratidão de
Sem-Pernas ao viver à custa dessas pessoas que o adotam, desfrutando de tudo
que lhe era oferecido, enquanto calcula como será o assalto na casa onde
reside. Apesar disso, é ao longo do capítulo que o mais frio e complexo dos
Capitães da Areia se humaniza aos poucos e vive um paradoxo psicológico. Ele
gosta do tratamento que recebe, mas não consegue se doar em retorno e nem pode
desfrutar do amor familiar que sempre quis. Ele sabia que se acomodar a essa
situação seria abandonar o seu grupo, ao qual tinha muito respeito. Ao mesmo
tempo, também se sente mal por estar num meio que não se identifica e por não
acreditar que gostem dele de verdade, mas da lembrança do filho falecido que
ele revive.
É emocionante perceber o arrependimento
do menino. Ao ceder aos carinhos maternos de Dona Ester, este se revela frágil
e sentimental, tal como fingia ser, mas ainda traumatizado com a violência que
sofreu. Apesar de prosseguir com a idéia do furto, no final do capítulo o mesmo
se nega a receber o dinheiro da sua parte, prova de uma verdadeira metamorfose.
Numa análise bem próxima do cotidiano,
percebe-se a enorme disparidade econômica, social e cultural entre esses
elementos da mesma sociedade. É uma crítica aos valores burgueses, às
diferenças de classe e à hipocrisia contida nessas relações, que mascara o
preconceito de ambos os lados.
AMADO, Jorge. Família. In: Capitães da Areia. Rio de
Janeiro: Record, 2002.
*Texto integrante da coletânea "Prêmio
Literário Valdeck Almeidade Jesus 2012", lançado durante
o 27º Salão do Livro e Imprensa de Genebra (Suíça), em maio de 2013.
2 comentários:
Capitães da Areia! Simplesmente, ado ro!
É um livro imprescindível mesmo, amiga.
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